A arqueologia do mal

"Desde antes de Jair Bolsonaro se tornar presidente já se sabia de sua índole doentia e seu caráter mórbido", escreve Fernando Lionel Quiroga

Marcos do Val e Jair Bolsonaro
Marcos do Val e Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução)


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Por Fernando Lionel Quiroga 

 Dizer que somente agora vamos descobrindo o que era, de fato, o governo Bolsonaro é ingenuidade ou hipocrisia. É verdade, como observou Gilmar Mendes, que estávamos sendo governados por “gente do porão”. O que não faz sentido é o tom de surpresa, como se de repente descobríssemos que o mocinho era na verdade o bandido da história. Acontece que desde antes de Jair Bolsonaro se tornar presidente já se sabia de sua índole doentia e seu caráter mórbido; seu fetiche pelas armas e pela tortura. 

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Assim como é sempre salutar manter viva a memória, reafirmando, sempre que possível, que tudo o que o Brasil passou nos últimos anos teve início com o golpe perpetrado contra a Dilma Rousseff, é necessário, do mesmo modo, reconhecer - especialmente de um ponto de vista pedagógico - que aquele que chegou a ser presidente entre os anos 2019-2022 já demonstrava ser o perigo que hoje alguns se forçam a ver apenas de modo retrospectivo. 

Diversas declarações, antes mesmo de se tornar presidente, deixam claro os traços de sua personalidade. A Carta Capital publicou em 29/10/2018 diversas frases, dividindo-as por eixos temáticos. Republico-as aqui com o objetivo de que as mesmas continuem provocando a indignação daqueles que já as conheciam, mas também que possam provocar a daqueles que ainda possam ter qualquer tipo de dúvida:

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“O erro da ditadura foi torturar e não matar” (2008 e 2016);

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff […] o meu voto é sim” (2016);

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“Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também” (1999);

“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.” (1999) ;

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“A atual Constituição garante a intervenção das Forças Armadas para a manutenção da lei e da ordem. Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo (1999);

“Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre. Vou botar esses picaretas para correr do Acre. Já que gosta tanto da Venezuela, essa turma tem que ir para lá” (2018);

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“Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” (2018);

“[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado” (2018);

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“Morreram poucos. A PM tinha que ter matado mil” (1992);

“Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem” (2017);

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“Eu jamais ia estuprar você porque você não merece” (2003 e 2014);

“Por isso o cara paga menos para a mulher (porque ela engravida)” (2014);

“Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher” (2017);

“Para mim é a morte. Digo mais: prefiro que morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo” (2011);

“O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele. Tá certo?” (2010);

“90% desses meninos adotados [por um casal gay] vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa com toda certeza”;

“Não existe homofobia no Brasil. A maioria dos que morrem, 90% dos homossexuais que morrem, morre em locais de consumo de drogas, em local de prostituição, ou executado pelo próprio parceiro” (2013);

“O cara vem pedir dinheiro para mim para ajudar os aidéticos. A maioria é por compartilhamento de seringa ou homossexualismo. Não vou ajudar porra nenhuma! Vou ajudar o garoto que é decente” (2011);

“Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens” (2008);

“Fui num quilombola [sic] em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais” (2017);

“Quem usa cota, no meu entender, está assinando embaixo que é incompetente. Eu não entraria num avião pilotado por um cotista. Nem aceitaria ser operado por um médico cotista” (2011);

“Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso” (2018);

“A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver” (2015);

“Se eu chegar lá, não vai ter dinheiro para ONG. Esses inúteis vão ter que trabalhar” (2017);

“Como eu estava solteiro na época, esse dinheiro do auxílio-moradia eu usava para comer gente (2018).

A imagem que fica, ao final da leitura, é de uma radiografia do espírito que se espalhou por todo o Brasil nos anos que se sucederam ao golpe. Exatamente um período de temor e frustração coletiva. De um lado, a ala politizada vendo o estado de direito ruir ante seus olhos; de outro, a ala dos ignorantes, frustrados e ressentidos, apegada à violência da extrema-direita em nome da velha fórmula “Deus, da pátria e família”. As declarações proferidas ao longo do tempo deixam evidente a arqueologia da destruição que viria assombrar o Brasil nos anos de seu criminoso governo. 

A importância em rememorar o golpe não é gratuita, já que seus efeitos são justamente o que nos levam a Jair Bolsonaro. Não houvesse golpe, e a democracia fosse realmente respeitada, não teríamos chegado ao resultado monstruoso ao qual chegamos: do genocício dos Yanomâmis ao descalabro da saúde pública durante a pandemia; do desmonte da educação pública, ao sucateamento do Sistema Único de Saúde; do desmatamento ilegal, à desregulamentação das políticas de controle ambiental; do ataque aos jornalistas à afronta sistemática às instituições democráticas. Por todos os ângulos que se olhe, o Brasil de Bolsonaro foi desde sempre tratado de modo deliberadamente criminoso. A sensação é a da inexistência de governo. Neste sentido, apenas para citarmos o mais recente dos casos, é espantoso que a ministra Damares Alves não seja responsabilizada pelas condições em que foram encontrados os Yanomamis. É insólito o modo como a irritação tem servido de salvo-conduto ultimamente na política brasileira. Basta mostrar-se “irritado (a)” para que reste a sensação de que é injusto que se questione sobre isto ou aquilo. Por favor! Essa política do silenciamento, movida pela disseminação do medo, não pode passar despercebida, especialmente agora que o Brasil começa a retomar o fôlego democrático. 

A arqueologia do mal ensina o quão perigoso é e segue sendo o tergiversado uso da  “liberdade de expressão” enquanto pilar da democracia.  A estratégia da extrema-direita consiste em aproveitar-se do substantivo “liberdade” para esvaziar-se de qualquer responsabilidade sobre toda e qualquer afirmação: uma chave que tem permitido, de modo continuado, a propagação do ódio impulsionado por um discurso que busca de modo intencional desviar-se da realidade. Os diversos episódios de realidade paralela que assistimos mais recentemente, especialmente depois do resultado das eleições, são os efeitos mais bem acabados dessa estratégia. Eles (os bolsonaristas) não são lunáticos por natureza. Antes disso, são cobaias de um experimento perpetrado pela extrema-direita mundial que utiliza-se do arcaico expediente de desviar a atenção para, então, dar o bote.   É a ilusão do ladrão de rua elevada à máxima potência. Cada uma das declarações que antecederam o mandato do ex-presidente Bolsonaro são condutoras de um movimento claramente destinado à destruição e à morte. 

A disseminação da mentira, do negacionismo científico e da incitação à violência formam as peças centrais de um método que se instalou no Brasil com bastante êxito. Soma-se a isso o pacote moral em defesa dos “valores da família”, que acaba se convertendo no atual voto de cabresto, e o relativismo político, produzido pela má-fé de setores da mídia tradicional, que buscam neutralizar o campo progressista por meio de aproximações esdrúxulas com o caráter mórbido da extrema-direita fascista. Finalmente, o enfrentamento da necropolítica deve necessariamente incluir a participação efetiva dos setores democráticos e dos trabalhadores enquanto vigias permanentes das frágeis fronteiras da democracia.  

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