24 de Março: um ponto de chegada e partida das lutas populares
“Memória, verdade e justiça” na Argentina
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Novamente, o clamor do povo argentino pela “Memória, verdade e justiça”, se repete nas ruas a cada 24 de março, quando há 47 anos se perpetrou o golpe da ditadura cívico-militar em 1976 obscurecendo o país com prisões, torturas, mortes e mais de 30 mil pessoas desaparecidas; um massacre político-ideológico massivo que abalou a América Latina, produto da ação concatenada do império dos EUA, já presente no golpe contra Allende no Chile.
Para os que presenciaram estas manifestações abraçando as mães e avós da Praça de Maio, anos após anos, iniciadas há 20 anos desde 1990, não se trata de uma repetição dos outros 24M. É a expressão do DNA vivo na história deste povo, de persistência para que a memória social não se perca até que a verdade aflore e a justiça se cumpra. E para que “Nunca Mais!” tal terror volte a se repetir. Para isso há que concretizar uma política de governo profundamente transformadora.
Uma das infinitas expressões dessa memória e consciência da sociedade argentina é o que sintetiza, por exemplo, Victoria Montenegro, deputada (FdT) da Cidade de Buenos Aires, filha de desaparecides, que foi apropriada por um repressor em 1976, e recuperou sua identidade no ano 2000 graças às avós da Praça de Maio: “O 24 de março de 1976 é consequência de tragédias anteriores da nossa história onde havia um objetivo principal que era ir contra a consciência do povo, com bombas, fuzilamentos, com proscrição. Esse era o objetivo. De quem? Dos interesses econômicos, do império; sempre do império.”... “Neste 24 de março reivindicamos que são 30 mil, que a ditadura foi cívico-militar e que a Praça tem que estar cheia de pessoas que digam “Nunca mais” esta história se pode repetir. Ditadura judicial, nunca mais! Veja seu brilhante discurso na Assembléia Legislativa da capital.
A verdade está nas investigações desvendadas pelos Organismos de Direitos Humanos [CELS, Madres e Avós da Praça de Maio, HIJOS (filhos), NIETES (netos)], no legado de Hebe de Bonafini, apoiados por uma parte de procuradores, advogados e juízes honrados (Rafecas, Zaffaroni, os Ramos Padilla, Gils Carbó e tantos outros) comprometidos com o Direito e a Justiça social; e governos democráticos como Raúl Alfonsin e Nestor Kirchner que, respectivamente em 1983 e 2003, possibilitaram a abertura dos julgamentos de lesa humanidade.
A justiça é a que não está vigente. Muito pelo contrário, está moribunda; mais do que nunca, tornou-se dependente do Partido Judicial Midiático e da máfia judicial, como qualifica a vice-presidenta Cristina Kirchner; do poder econômico das corporações que, não obstante os recentes anos de governo peronista, está intacto. “A democracia corre perigo!”, alertou Cristina neste 24 de março. "A democracia corre perigo quando a concentração econômica e de poder aprofunda cada vez mais as desigualdades sociais" ... “hoje, nas ruas e praças, centenas de milhares marcham pela Memória, Verdade e Justiça para defender a Democracia e dizer Nunca Mais a este Judiciário”. Não há que olvidar o que foi o Plano Condor tão bem narrado pela escritora Stella Calloni; com outro formato hoje: do uniforme militar à bata de juiz.
É a “in-justiça” a que continua no banco dos réus. Não somente porque vários genocidas não foram processados até a condenação final, ou continuam em domiciliárias; porque não obstante a desaprovação da Lei 2x1 no Congresso para os acusados de lesa humanidade, como pretendia o governo Macri, este impôs, por decreto, dois de seus juízes na Corte Suprema. Por isso, esta manifestação não foi uma simples repetição dos anos anteriores. Ela está inserida nesse novo contexto de confronto onde surge um Milei e Libertários, mas também se acende um Julgamento Político no Legislativo pelo mal desempenho e parcialidade da Corte Suprema de Justiça. Eis porque a principal bandeira hoje torna-se o questionamento à condenação sem provas e à proscrição da vice-presidenta Cristina Kirchner, ditadas por essa “Justiça”. A vice-presidenta é, sem dúvidas, a principal força capaz de reverter politicamente, e recuperar o Estado de direito.
À multitudinária manifestação nas avenidas de Buenos Aires, rumo à Praça de Maio, somaram-se as milhares de manifestações todo o país. As tradicionais Centrais sindicais (CTAs,CGT), partidos políticos peronistas, kirchneristas, La Câmpora, comunistas e esquerdistas, organizações sociais e de bairro, artistas, feministas, puxaram vários cordões, mesclados com famílias inteiras, crianças, jovens organizados ou independentes que superlotaram os metrôs, em pleno feriado nacional, para defender a democracia e o interesse coletivo.
O dia 24 de março é um dos momentos mais elevados de expressão de consciência política e de união e solidariedade do povo argentino. Às vésperas desta data, feriado pátrio, se realizam em todas as escolas públicas (das primárias às secundárias), atos cívicos, com bandeira e hino nacional, comícios e representações teatrais e canções conscientizando os estudantes sobre o momento histórico da ditadura, e suas atrocidades contra os sonhos de justiça e igualdade social de um povo. É comum encontrar, nessa infância estudantil, netos e netas de desaparecidos. Os governos kirchneristas criaram o ambiente para a Memória. Produziram-se 300 vídeo-documentários e 600 livros (muitos para crianças). Além disso, museus: ex-ESMA (Escola de Mecânica da Armada), Praça da Memória, Mansão Seré, La Perla (Córdoba) e tantos outros, país afora. Enfim, memória ativa! Proibido olvidar!
O VII Fórum Internacional pelos Direitos Humanos e o 24M
A presença internacional também se fez sentir no 24M. O núcleo do PT e residentes brasileires, com Mônica Benício (PSOL), iniciaram a caminhada partindo da frente da embaixada do Brasil com o cartaz “Nem anistia, nem perdão”. A comunidade peruana levava cartazes contra o golpe de Dina Boluarte: “Renuncie assassina! Basta de mortes. O Perú te repudia!”. Residentes colombianos protestaram pelos seus 5 cidadãos presos e desaparecidos na ditadura cívico-militar argentina: “Colombianos pela Memória”
Intelectuais e políticos progressistas do mundo, atuantes nas várias mesas de debate no Espaço da Memória da ex-ESMA e do Centro Cultural Néstor Kirchner, durante o III Fórum Internacional dos Direitos Humanos em Buenos Aires, marcaram também sua presença nas ruas. O 24 de março, dia da Memória, Verdade e Justiça, fechava com chave de ouro o Fórum e punha em prática o clamor levantado na reunião do Grupo de Puebla, nas palavras de Cristina Kirchner, Rafael Correa, Evo Moráles, junto a Zapatero, Ernesto Zamper, Baltazar Gastón e tantos outros juristas e líderes latino-americanos contra o lawfare. Veja o discurso de Cristina quem recebeu a plena solidariedade do Grupo de Puebla contra a sua condenação e proscrição, após a gravíssima tentativa de magnicídio.
Cristina, no Centro Cultural Kirchner, junto aos ex-presidentes, Correa, Evo e Mujica, recordou a tal da “década ganhada”, incluindo os ausentes, Chávez, Néstor e Lula: “Foi a década virtuosa. Foi o momento em que mais se reduziu a desigualdade econômica e social da região. Essa é a chave. Eles não nos perseguem porque somos populistas, eles nos perseguem porque igualamos as sociedades, com justiça social, o direito dos trabalhadores de participar do produto bruto do que eles produzem”.
Nestor Kirchner iniciou a reconstrução da memoria e a política pela verdade e justiça. Anularam-se as leis de impunidade, chamadas “Ponto Final” (1986) e “Obediência Devida” (1987), e os indultos aos repressores realizados por Menen (1989-1990). Nestor, em 2003, deu exemplos de contundência e comunicação pública, como Lopez Obrador hoje. Por rede nacional de TV, convocou o Congresso para o julgamento político e a renovação da Corte Suprema então alinhada ao poder econômico de anos de menemismo. "Pedimos com toda humildade, mas com coragem e firmeza, que os legisladores, que o Congresso Nacional, estabeleçam um marco rumo à nova Argentina, preservando as instituições de homens que não estão à altura das circunstâncias”. Leia mais. Cristina Kirchner, recorda que a partir de 2006 se reabriram os julgamentos de lesa humanidade com mais de 1000 condenados, incluindo Rafael Videla. “
“Eles nunca vão nos perdoar pela reconstrução da economia e pelo que conseguimos construir em termos de direitos humanos”, disse Cristina ao Grupo de Puebla.
"Não me importa se vão me prender, o que me importa é reconstruirmos um Estado democrático e constitucional em que as garantias estabelecidas pela Constituição não sejam papel pintado. Reconstruir um país que já tivemos, é possível fazer porque nós o fizemos uma vez"
As manifestações prometem abrir alas a várias outras contra a proscrição de Cristina e do peronismo. A primeira pedra já foi lançada pelo padre Paco Olveira, organizador dos “Padres da Opção pelos Pobres” com sua greve de fome (e outros quatro) contra a Máfia Judicial, pedindo a renúncia desta Corte Suprema. O protesto do padre Paco se dá diante do Palácio dos Tribunais na capital e tende a alargar-se com apoios solidários que culminam neste 31 de março. Daí se reproduzirão outras formas de protesto, mas a consígnia está dada.
Na rádio ElDestape, padre Paco explica como esta máfia afeta a vida dos pobres. São estes padres que vivem junto à realidade crua das favelas, pensam como os nossos Teólogos da Libertação e são referência para o Papa Francisco que, em entrevista no Vaticano ao jornalista Gato Silvestre do C5N, condena o lawfare: “O lawfare começa pela mídia, que desqualifica e levanta suspeita de um crime. Esses resumos enormes são elaborados e o volume desse resumo é suficiente para condenar, mesmo que o crime não seja encontrado”. Recordou que assim condenaram a Lula da Silva e Dilma Rousseff, a quem qualificou de "Uma mulher de mãos limpas, uma mulher excelente".
Um ítem central para o julgamento à Corte Suprema é a aprovação criminosa da dívida de 45 bilhões de dólares de Macri com o FMI. Certamente as revisões dos acordos com o FMI deverão basear-se nas novas condições da crise global (pandemia, guerra, crise bancária), mas, priorizando as necessidades básicas de sobrevivência da cidadania e da soberania nacional argentina. O debate esteve nas mesas de negociações com Biden. Mas, não todas as cartas estiveram sobre essa mesa. Não se trata só de reservas do Banco Central, mas de recursos naturais. As transnacionais norte-americanas e o Comando Sul estão de olho no lítio, petróleo e gás como já deixaram claro na fala de Laura Richardson. Boa resposta da Bolívia que decidiu estatizar o lítio e processá-lo com valor agregado. O Brasil de Lula também não está parado: fará acordos comerciais bilaterais com a China sem o dólar furado. A Argentina anda a caminho, mas um pouco devagar. O 24M sacode o governo e suas lideranças.
O 24 de março dá sempre uma jorrada de ar, de esperança, de clamor do povo argentino para que os abutres não vençam e os gorilas não voltem. É um ponto de chegada e de partida da luta popular. Acende-se a lâmpada para ver como este governo deve impor a democracia, com rapidez nas ações econômicas a favor dos excluídos, com mais Estado, controle de preços e da inflação, priorizando os salários com política distributiva justa.
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