200 milhões de trouxas?
Paulo Guedes tem privilegiado as relações com o universo do sistema financeiro para transmitir seus recados de forma mais ampla
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O simbolismo do superministro Paulo Guedes tem sido um elemento importante para assegurar um patamar mínimo de credibilidade para o governo junto ao seleto circuito do alto financismo em nosso País. Ele costuma ser apresentado por seus bajuladores como alguém audacioso, destemido e corajoso. Aquela velha lenga-lenga do “homem que faz”.
Ocorre que a realidade costuma ser um pouco mais complicada do que as intenções desse pessoal. A aplicação do receituário da cartilha ultrapassada do aprendiz de neoliberalismo não surtiu os efeitos desejados. O PIB de 2019 conseguiu ser mais diminuto (1,1%) ainda do que os pibinhos registrados sob a gestão Temer, quando a economia era comandada pelo também banqueiro Henrique Meirelles. Assim, o mito da eficiência logo caiu por terra. Já no quesito audácia e coragem, qualquer tipo de avaliação entra necessariamente pela seara do subjetivo. O old chicago boy é chegado - isso é forçoso reconhecer - em uma boa bravata. Fala pelos cotovelos e se acha o ó do borobodó. Mas ao longo dos últimos meses - e bem antes do início da crise do covid 19 - ele anda morrendo de medo do contato com a população e com a imprensa.
Sincericídio de Guedes
Paulo Guedes tem privilegiado as relações com o universo do sistema financeiro para transmitir seus recados de forma mais ampla. Faz conversas ao vivo patrocinadas por bancos e demais entidades congêneres, em ambientes onde pode se sentir mais relaxado e mais à vontade. Por ali nunca aparecerão perguntas incômodas e muito menos saias justas comprometedoras. O único problema com que ele se defronta em tais situações é ele mesmo. Mas isso é inescapável. Por vezes, Guedes se solta por inteiro e revela elementos de seu pensamento profundo que terminam por se transformar em verdadeiros sincericídios. O episódio mais recente deu-se em uma conversa privilegiada sob os auspícios de um dos grandes bancos de nossas terras, o Itaú. Pois foi lá que ele se saiu com a famosa imagem do Brasil com sua população sendo espoliada pelas instituições bancárias. Quis a ironia da história que a afirmação fosse pronunciada por um dos profissionais que mais se beneficiou desse modelo concentrador do financismo e dirigida àqueles que o convidaram, um dos maiores bancos privados. Quem assistiu à conversa, registrou a fala:
(...) “Em vez de termos 200 milhões de trouxas sendo explorados por seis bancos, seis empreiteiras, seis empresas de cabotagem, seis distribuidoras de combustíveis; em vez de sermos isso, vai ser o contrário. Teremos centenas, milhares de empresas” (...)
Acredite quem quiser. Impossível imaginar que Paulo Guedes tenha, subitamente, se convertido em um crítico de algumas das características mais marcantes do capitalismo contemporâneo. Por um lado, o processo de dominância da dimensão financeira sobre o conjunto das demais atividades econômicas. De outro lado, o processo também inexorável e cruel da concentração, da centralização e da oligopolização dos principais setores da economia. Aliás, ele só conseguiu construir sua trajetória profissional e acumular seu patrimônio graças a essas duas características do chamado “mercado”. Soa mesmo a um deboche esse tipo de declaração do homem forte de Bolsonaro para a economia.
Os “trouxas” exigem mudanças
A única verdade da fala é a exploração a que vem sendo submetida, há décadas - diga-se de passagem - a grande maioria da população brasileira, em seu cotidiano pela ação coordenada e deletéria do parasitismo financista. Já a qualificação de “trouxas” fica por conta do conhecido preconceito de classe de nossas elites, que não se sentem assim tão exploradas por esse sistema bastante perverso. Na verdade, pelo contrário, são elas maiores beneficiárias do mesmo. E Paulo Guedes nada mais fez do que verbalizar tal sentimento. Sentiu-se em casa e soltou o verbo, sem nenhuma auto censura. Os “trouxas” quase não têm mais acesso a cédulas de reais. A grande maioria das operações do cotidiano são realizadas por meio do “dinheiro de plástico”, como foram chamados os cartões no momento de seu surgimento como uma revolução tecnológica pré universalização do mundo digital. Hoje em dia, tudo se faz por meio de toques e cliques nos celulares. A dependência ao sistema financeiro é absoluta. É por ali que se recebem os salários e demais provimentos. É por ali que são realizadas os pagamentos, as compras e demais formas de consumo. Ora, sob tais condições, o caminho mais relevante para garantir direitos e evitar abusos é por meio da presença do Estado. Seja na condição de agente fiscalizador e regulador de tais atividades, seja na condição de empresas estatais atuando no próprio mercado e impondo outro patamar de conduta. Mas esse é exatamente o oposto do que pensa Guedes. Ele quer privatizar Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e os demais bancos estatais. Ou seja, pretende transformar a meia dúzia de bancos em um paraíso completo para o capital privado continuar explorando a grande maioria de nossa sociedade. Já no quesito fiscalização e regulação, o Banco Central e demais agências e órgãos de controle do sistema financeiro continuam sob o comando das raposas. Ao invés de fazerem valer os interesses de todos os que não participam dos conluios e benesses do financismo, a tecnocracia acaba por ser capturada para defender os desejos e as vontades daqueles que deveriam ser o objeto de maior controle e rigor.
Contra a privatização e por mais regulação
A busca de alternativas, a exemplo das cooperativas de crédito e das empresas de menor porte voltadas para o micro crédito, são importantes e necessárias. Mas não tenhamos a ilusão de que isso se fará da noite para o dia e que os grandes conglomerados privados do setor bancário assistirão a essa perda de poder e de dinheiro de forma passiva. Não existe solução para democratização do acesso aos serviços financeiros sem uma forte participação Estado brasileiro em todos os processos a eles relacionados. Isso significa a necessidade emergente de reforçar de forma ampla a luta contra as intenções privatizantes do liberaloide que ainda fala em nome de Bolsonaro para assuntos econômicos. E também significa impedir que seja dada sequência ao processo de desmonte das instituições e políticas públicas em nosso País. A crise da covid 19 está deixando cada vez mais claro que nosso problemas não são de um suposto “excesso de Estado”, tal como propagandeado pelos grandes meios de comunicação ao longo das últimas décadas. Aos poucos, os “trouxas” estão se dando conta de que o caminho é exatamente o oposto. Precisamos defender nossas instituições republicanas e desenvolvimentistas, tal como previstas na Constituição. Esse é dever de todos nós, para preservarmos as condições de retomar em futuro próximo as alternativas de desenvolvimento social e econômico com inclusão e redução das desigualdades.
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