1964, o ano que não terminou II

As instituições são instrumentos essenciais a uma vida livre, por isso quando elas contêm valores autoritários, quando o STF modula os efeitos de suas decisões, as instituições são apenas cortina de fumaça para disfarçar a violência do domínio exercido por poucos

1964, o ano que não terminou II
1964, o ano que não terminou II (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)


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"... a liberdade só reside lá onde o povo é soberano; e nada pode ser mais doce do que ela, que se não é para todos, não é mais liberdade." (Marcus Cícero, in Da República, I, XXXI).

Sigo refletindo sobre o caminho que nos trouxe até aqui. Noutras palavras: por que, após 34 anos do fim dos governos autoritários de 1964 a 1985, a população escolheu o caminho representativo do autoritarismo e de valores perigosamente retrógrados?

Bem, segundo meu querido amigo Manoel Cyrillo - que pelo seu heroísmo passou quase uma década sob ciosa, violenta, desumana e cruel tutela do Estado Ditatorial - a ditadura não chegou a fim, foi convolada em instituição, foi legalizada. Não ocorreu uma ruptura, mas institucionalizaram-se as estruturas autoritárias de Estado.

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A ditadura segue viva e segue presente ainda hoje, pois tem alicerces inabalados, porque o processo de redemocratização foi pensado e conduzido pelos generais golpistas, empreiteiros, multinacionais e o sistema financeiro, todos associados ao governo autoritário. A redemocratização foi conduzida minuciosamente por Golbery e Geisel e não pelas forças políticas democráticas.

E assim, como a Proclamação da República que não contou com a participação do Partido Republicano (que teria tomado conhecimento pelo jornal), a redemocratização brasileira foi etapa pensada e construída passo a passo pelos militares e civis golpistas, de tal sorte que seguissem presentes e influenciando estruturas e instituições do Estado, os Poderes da República, especialmente o Poder Judiciário e tutelando interesses de classe.

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Não estou afirmando que o Partido Republicano ou os heróis da luta pela redemocratização no Brasil tenham tido papel irrelevante ou imemorável, não se trata disso. Estou considerando que, possivelmente, nesses dois momentos o establishment e seus representantes se anteciparam e assumiram a condução e o controle de um processo que vinha sendo construído politicamente por outros atores.

Manoel Cyrillo lembrou recentemente que na transição do governo Médici para o governo Geisel foi criado um "escritório de transição" no Largo da Misericórdia, onde se cuidou de estabelecer, um caminho seguro para uma "abertura política", tudo sob zelosa atenção e minucioso cuidado do General Golbery do Couto e Silva, que voltava à cena política, depois de ter se dedicado alguns anos aos interesses da Dow Química no Brasil e na América Latina.

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Mas o que seria um caminho seguro para os generais golpistas?

O que seria, enfim, uma abertura?

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Cito novamente o livro de David Maciel, chamado "De Sarney a Collor – reflexões Políticas, Democratização e Crise (1985 – 1990)", no qual ele afirma que a transição democrática, representada pelo governo Sarney, cuidou apenas de substituir de forma cosmética a institucionalidade autoritária por uma institucionalidade pretensamente democrática, pois foram mantidas estruturas e instituições sob a orientação da compreensão do alto comando das forças armadas e que não teria sido, por óbvio, o governo Sarney ou a constituinte capazes de romper com o entulho autoritário, menos ainda Collor ou Itamar.

Eu sigo acreditando que Fernando Henrique e Lula poderiam ter feito reformas fundamentais e estabelecido uma inflexão democrática, mas as escolhas de seus governos mantiveram no centro de decisão o calendário eleitoral, por isso ambos são responsáveis pelo fenômeno Bolsonaro, mas a esse tema retomo noutro momento.

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Também não estou comparando os resultados econômicos e sociais dos governos FHC e Lula, pois o segundo foi anos-luz superior, mas nenhum dos dois buscou realizar reformas necessárias à ruptura definitiva com a lógica do Largo da Misericórdia.

Volto a Golbery. Golbery criou e chefiou o SNI no governo Castello Branco e tornou-se a figura de maior destaque do governo Geisel.

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Mas quem era de fato o General Golbery do Couto e Silva?

Golbery durante seus anos de Exército cultivou a imagem de um intelectual voltado para o que julgava serem os grandes problemas políticos e estratégicos do país.

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Primeiro aluno de sua turma (1927/30) teve sua carreira marcada pelo interesse em participar das decisões quanto aos rumos políticos do Brasil, isso o levou a ingressar em 1952 na Escola Superior de Guerra, órgão que exerceu grande influência na definição da estratégia e dos programas dos governos posteriores a 1964.

Em 1960 Golbery colaborou com a campanha de Jânio Quadros à presidência da República e em 1961 deixou o Exercito reformando-se no posto de general para participar do IPES — Instituto de Pesquisas Sociais — uma organização sustentada por empresários que se opunham ao governo João Goulart e que viria a desempenhar um importante papel na articulação do golpe de 1964.

No IPES Golbery manteve contato com oficiais envolvidos na conspiração que resultaria no golpe de março de 64, especialmente com o então general Castelo Branco, de quem era amigo e admirador, de quem se tornaria auxiliar como primeiro chefe do SNI.

As estruturas do IPES e do IBAP auxiliavam a interação entre os altos oficiais com o empresariado, especialmente o capital internacional e seus associados e o capital financeiro, ou seja, eles institucionalizaram o lobby e a corrupção no regime militar.

Bem, terminado o governo Castelo Branco, Golbery deixou a vida pública para ocupar o posto de presidente da Dow Química do Brasil, subsidiária do poderoso grupo norte-americano Dow Chemical, sendo depois promovido à presidência do grupo na América do Sul.

Era bem comum a participação de militares em grandes empresas nacionais e multinacionais, com o objetivo de obterem conexões e facilidades junto ao governo central.

O filho, por exemplo, de Costa e Silva estava ligado à General Eletric, Golbery participou também do Banco Cidade, Mario Andreazza na Seguros Boavista, etc., a lista é grande e pode ser conferida no trabalho de Pedro Henrique Pedreira Campos, "A Ditadura das empreiteiras: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado Ditatorial brasileiro", tese de doutorado da Universidade Federal Fluminense.

Desligado da Dow, da qual se despediu com um banquete em São Paulo oferecido por empresários, voltou ao governo para ser a peça mais importante depois do próprio Geisel.

Em virtude das suas habilidades e aptidões Golbery desempenhou no governo funções de caráter essencialmente político. Coube a Golbery a coordenação política do governo Geisel; caiba e ele manter a coesão do Ministério, do Congresso, da ARENA e de todas as forças políticas que apoiavam ou deveriam apoiar o governo, tudo coordenado e harmonizado aos seus objetivos estratégicos.

Uma das mais importantes incumbências de Golbery foi procurar ampliar a base de apoio ao governo incorporando a ela o máximo possível de forças com um mínimo de desvios e concessões quanto às opções políticas, econômicas e sociais adotadas pelos governos pós-1964.

A institucionalização da revolução mexicana. Golbery dizia, segundo Manoel Cyrillo - para quem quisesse ouvir – que ele estava atento ao processo político no México, onde o PRI institucionalizou a revolução. Daí porque não se apresenta absurdo que Golbery tenha planejado a institucionalização da ditadura e seus valores.

E apenas para registro rápido. Em 1929 Plutarco Elías Calles criou o Partido Nacional Revolucionário (PNR) com a finalidade de estabelecer no país e normalizar o acesso ao poder dos principais veteranos da Revolução Mexicana, em 1938 Lázaro Cárdenas del Río, apoiado pelas principais centrais de operários e camponesas do país, muda o nome da instituição para Partido da Revolução Mexicana (PRM) e no ano de 1946, com o fim de enfatizar o início de uma nova época na qual o governo do México não seria mais liderado pelos principais revolucionários e sim pelas instituições sociais que surgiram a partir da guerra civil, o partido adaptou o nome com o qual se conhece até a atualidade: Partido Revolucionário Institucional (PRI). O PRI foi o partido majoritário até meados dos anos 1990, ou seja, ficou no poder por quase setenta anos, graças ao processo de institucionalização de seus valores.

Golbery era um homem conservador de seu tempo. É sempre arriscado resumir teses e ideias de alguém, mas segundo reportagem do Jornal Opinião, de 11 de março de 1974, pode-se dizer que Golbery via o "mundo num impasse imposto pela rigorosa divisão entre o Ocidente democrático, liderado pelos EUA, e cristão e o Oriente comunista, encabeçado pela URSS e pela China". Era anticomunista obviamente e cheio de certezas equivocadas, critico dos fóruns multipolares como a ONU. Seu pensamento pode ser compreendido através da leitura de seu livro "Geopolítica no Brasil" e identificado nas opiniões tornadas públicas em entrevistas constrangedoras de Mourão e Bolsonaro, hóspedes do Jaburu e da Alvorada respectivamente.

O STF, instrumento fundamental para hegemonia. Fato é que Golbery só deixou o governo federal depois de garantir a institucionalização do golpe de 1964, o que pode ser representado pela nomeação de ministros do STF alinhados à institucionalidade autoritária.

Esse cuidado garantiu um STF majoritariamente alinhado aos valores do golpe de 1964 por dezessete anos, pois Sarney, Collor e Itamar nomearam apenas um ministro cada. Essa realidade só foi alterada com a nomeação de Gilmar Mendes por FHC em 2002, quando se formou uma maioria no Supremo de ministros nomeada pelos presidentes civis (antes FHC havia nomeado em 1997 o gaúcho Nelson Jobin e no ano 2000 a carioca Ellen Gracie).

CONCLUSÃO. Conforme ensina o Professor Newton Bignotto da UFMG, as instituições são instrumentos essenciais a uma vida livre, por isso quando elas contêm valores autoritários, quando as leis são produzidas para manter ou ampliar privilégios de classe e quando o STF modula os efeitos de suas decisões, as instituições são apenas cortina de fumaça para disfarçar a violência do domínio exercido por poucos sobre a vida de todos.

No Brasil as instituições preservam e reproduzem os valores autoritários, razão pela qual sua legitimidade é relativa.

O setor empresarial (Fiesp e Febraban em especial) zomba do valor fundamental da república, zomba do POVO, pois ele é o fundamento da república e da liberdade, não pode seguir sendo massa à disposição dos que querem apenas manipulá-lo para realizar seus fins.

Está passando do momento de arregaçarmos as mangas e rompermos definitivamente com a lógica do Largo da Misericórdia, está passando do momento de transformarmos essa colônia e suas capitanias hereditárias em uma nação tendo o povo brasileiro como protagonista.

 

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