1958, o Rhinoceros Party e os lacradores
Brasil precisa de uma prática social-democrata de verdade, precisamos de políticos menos preocupados em lacrar, como disposição para a Política
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Imaginem um partido que tivesse como proposta rebocar a Antártica até o Círculo Polar Ártico, para controlar “todo o frio do mundo”.
Essa foi a proposta do “Rhinoceros Party”, partido político canadense fundado em 1963, cujos membros se apresentavam como “marxistas-lennonistas”, referência a Groucho Marx e John Lennon.
O mais curioso, os canadenses se inspiraram nos eleitores brasileiros para fundar o “Rhinoceros Party”; para compreender o partido canadense temos que lançar o olhar para o Brasil de 1958. O livro, de Joaquim Ferreira dos Santos, FELIZ 1958! ― O ANO QUE NÃO DEVIA TERMINAR, ajuda ao relatar a delícia de ser brasileiro naquele final sorridente dos anos 50.
Em 1958 o Brasil sagrou-se campeão do mundo de futebol pela primeira vez; João Gilberto lançou o “78 rotações” com “Chega de saudade”; JK botou nas ruas o DKW-Vemag, o primeiro carro com 50% de suas peças produzidas aqui; o “cinema novo” começava; Zé Celso inaugurava o teatro oficina; o TBC continuava em cena; Oscar Niemeyer traçava Brasília; Adalgisa Colombo sagrou-se Miss Brasil revolucionando os concursos de beleza com uma ousadia que antecipava as mulheres dos anos 60; Maria Ester Bueno fazia história em Wimbledon e Jorge Amado lançou “Gabriela Cravo e Canela”.
Tudo parecia dar certo, foi um período exuberante para o país.
Dizem que 1958, ao contrário de 1968 - quando o pau quebrou e o ano não terminou, segundo Zuenir Ventura -, foi tão harmonioso que não devia terminar nunca.
Coisas espetaculares aconteceram, até um rinoceronte foi eleito para a câmara de vereadores em 1959, com mais de 100 mil votos.
Na realidade tratava-se de uma fêmea de rinoceronte, uma Abada, cujo nome era Cacareco e sua “eleição” é considerada o primeiro caso de voto de protesto no Brasil; sozinha ela teve mais votos que o partido mais votado; seus votos foram considerados nulos pelo Tribunal Regional Eleitoral.
A vitória deu a Cacareco notoriedade mundial, tanto que em 1963 foi fundado no Canadá um partido político que a homenageava e dizia ser descendente espiritual da Cacareco, o nome desse partido foi “The Rhinoceros Party” ou, em francês, “Part-Rhinoicéros”, que existiu até 19931
Há outros casos de votos de protesto, como o Macaco Tião, lançado candidato em 1988 pelos humoristas do “Casseta e Planeta” e que alcançou 400 mil votos à prefeitura do Rio de Janeiro. Tião morreu jovem em 1996, aos 33 anos, e o prefeito César Maia, pai do ex-presidente da Câmara dos deputados Rodrigo Maia, decretou luto oficial.
As vitórias eleitorais de Enéas e Tiririca, com votações recordes, também são consideradas como uma forma de protesto.
E a votação de Bolsonaro em 2018 pode ser considerada como outro exemplo de uma “votação de protesto”?
Penso que não, pois, as circunstâncias são mais complexas, apesar de conterem um componente de protesto, a eleição Bolsonaro não pode ser comparada à de Cacareco, Tião, Enéas ou Tiririca, pois, passados quase cinco anos da sua eleição, temos de reconhecer que a direita está de volta, que Bolsonaro é seu representante e que, lamentavelmente, há muitos “bolsonaros” no Brasil, não se tratando, portanto, apenas de um voto de protesto.
Em dezembro de 2014, quatro anos antes da eleição que levou um deputado irrelevante à presidência, escrevi: “... a direita está de volta? Será que Bolsonaro (que sempre considerei uma caricatura patética de uma direita reacionária e praticamente extinta) representa de fato muitos bolsonaros? Será que há muitos bolsonaros no Brasil?2. Fato é que com a chegada de Bolsonaro ao palco principal da arena política, muitos detritos - que até então boiavam anonimamente no chorume -, passaram a ter nome, rostos conhecidos e destaque midiático.
Uma frente venceu Bolsonaro em 2022, mas o que ele representa está por ai, “vivinho da silva”, tanto que todos os dias surge uma celebridade do esgoto bolsonarista.
Se Cacareco, Tião, Eneas e Tiririca não fizeram mal ao país, mas Bolsonaro é próprio mal que se pretende normalizar e o bolsonarismo, ao contrário do que declarou Barroso, não foi derrotado.
Derrotar o bolsonarismo, assim como o mal que ele representa, é trabalho de uma geração, deve ocorrer na arena da política, não nos tribunais ou nas estruturas do Estado. A população deve conhecê-lo, sem as máscaras, compreender o mal que representa e derrotá-lo.
Tomando o slogan "Politicians screw you—protect yourself", usado pelo “Rhinoceros Party” nas eleições de 1988, talvez possamos nos inspirar e criar por aqui algo que denuncie e liquide os interesses cartoriais dos partidos do centrão.
Precisamos de um partido, verdadeiramente livre, que denuncie os reais interesses da extrema-direita; ela não tem nenhum apreço à democracia e quer acesso ao Planalto para conspirar contra a própria democracia.
Estou realmente cansado de “progressistas de redes sociais”, gente que passou a ter apego demais aos gabinetes elegantes com ar-condicionado e que se esquece que o desenvolvimento social e econômico deve ocorrer a partir da sociedade, através dela e não no lugar dela, pois nada a substitui.
O Brasil precisa de uma prática social-democrata de verdade, precisamos de políticos menos preocupados em lacrar, como disposição para a Política e não apenas para disputar eleições.
Precisamos de um Partido Rinoceronte.
Essas são as reflexões.
1 https://en.wikipedia.org/wiki/Rhinoceros_Party
2 https://vermelho.org.br/2014/12/12/pedro-maciel-neto-a-direita-esta-de-volta/
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