15 de novembro e a República do Brasil: finalmente um país do presente?
Esta é uma das lições que os povos originários estão legando a um novo paradigma que nunca antes precisou ser encarado pela espécie humana, de que falarei
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Em 1941, Stefan Zweig escreveu seu quase idílico livro Brasil, país do futuro. O título do livro virou uma espécie de cantilena neoufanista no espírito brasileiro, brandida quase com orgulho pelos “patriotas” e todo o poder não construtivo (para não dizer destrutivo) que essa classe revelou com os atuais “patriotas” bolsonaristas, de que falarei em outros artigos, inclusive sob o prisma da psicanálise.
Ainda sobre o livro aludido, seis meses depois de lançar a obra, em 22 de fevereiro de 1942, o escritor austríaco Zweig, que dialogou com Einstein e Freud, se suicidou com sua esposa, em Petrópolis, a “cidade imperial” do estado do Rio de Janeiro. Para o homem, uma fatalidade dramática e trágica; para a história, uma ironia... Sua carta de despedida não se lamentava nem se decepcionava, aparentemente, no seu ato extremo, com o estado de coisas no Brasil, mas, sim, com o da Europa, cuja II Guerra estava em seu apogeu naquele momento.
Roger Bastide, um dos precursores da USP, com Lévi-Strauss e outros, também pensou o Brasil como um país de riqueza cultural imensa, de onde sai seu potencial como nação. Bastide chegou a iniciar-se no Candomblé, sobre o qual escreveu livros. Em ambos, sobretudo em Lévi-Strauss, é preciso perceber que a inclinação otimista, diferentemente de Zweig, é um tanto eclipsada.
O dia 15 de novembro é a data da proclamação da República brasileira. Não falarei das questões históricas polêmicas da forma como essa “proclamação” foi decretada, como uma espécie de golpe de estado. Observarei aqui a data, brevemente, através da perspectiva cultural brasileira. 15 de novembro é também o dia da Umbanda.
Tratarei em outras colunas do Candomblé e da Umbanda, assim como do Kardecismo, uma vez que são elementos entranhados na cultura popular brasileira. Mostrarei como a chamada “Macumba” é retratada em autores brasileiros como Lima Barreto, Mário de Andrade e até Machado de Assis, ecoando elementos ritualísticos altamente carnavalizantes, uma das razões pelas quais as religiões obtiveram tanta adesão no inconsciente coletivo do Brasil.
Também procurarei analisar como o Kardecismo se elevou de certa forma como uma religião-tampão da elite branca brasileira, que desejava uma mística mais colorida e carnavalizada do que o Catolicismo. Por isso, escolheu na obra de um francês intelectual do século XIX, Allan Kardec, a sua religião de cabeceira. Só no Brasil o Kardecismo é uma religião constituída, com beneplácitos oferecidos a partir do mesmo sincretismo do Catolicismo devocional que se engendrou nas Macumbas.
Voltando a falar em república e em futuro, lembram-me também os versos de um de nossos poetas maiores, Carlos Drummond de Andrade, que, com imensa frequência, e sem nada da “oratória escorregadia”, como disse João Cabral de Melo Neto sobre ele, punha sob uma fina camada, muitas vezes quase imperceptível, toda a questão de um verdadeiro projeto de nação brasileira, não um projeto vertiginoso e delirante de “certo” e “errado”, como militares bolsolavistas recentemente apresentaram em 93 páginas, horrorizando praticamente todas as pessoas (excetuando os “conservadores”, que guardam em seus valores muito do que está ali explicitado).
Diz Drummond:
“E são dissolvidos fragmentos
e o pó das demolições de tudo
que atravanca o disforme país futuro.”
Essa visão de “país do futuro” acaba soando como uma sombra, um aspecto dissociativo, um estigma que põe, de forma platônica, hipotética, utópica e especulativa, toda uma nação a se realizar num lugar e num tempo que, tecnicamente, podemos dizer que não existem: o futuro. Põe o Brasil, de certa forma, numa posição de alvo de uma eterna futurologia metafísica, calcada num otimismo leibniziano que o próprio Voltaire satirizaria com seu Professor Pangloss, o incansável “otimista”. O que “atravanca” o país, como lembra Drummond.
Não é à toa que o nosso Quincas Borba machadiano, que apoia a “guerra” como algo “conservador e benéfico”, e que elogia a morte da mesma forma que Sócrates, ache Pangloss um “caluniado” nas mãos de seu próprio autor, como narra Brás Cubas em suas Memórias póstumas, trazido na visão estudiosa de Josué Montello: “[Quincas Borba] morreu pouco tempo depois em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire” (ASSIS, 1881, apud MONTELLO, 1997, p. 295).
Machado de Assis, cuja visão arguta do Brasil é abordada em mais de uma obra minha, inclusive em seção quase-livro chamada Machado de Assis, o malandro do Rio de Janeiro, foi testemunha ocular de quebras de paradigma muito marcantes na história brasileira, como a “abolição” da escravatura (1888) e a proclamação da república (1889), aliás intimamente correlacionadas. Um de seus romances que tratam disso de forma mais explícita é Esaú e Jacó, cuja trama gira em torno de dois irmãos, Pedro e Paulo, em óbvias alusões onomásticas irônicas à Bíblia, que discordavam exatamente por um ser monarquista e o outro republicano.
Daniel Piza observa que, “mais uma vez, Machado vê o Brasil a dormir diante das dicotomias, embalado por um sonho rousseauniano de perfeição e estabilidade no paraíso tropical” (PIZA, 2005, p. 345).
Ainda em Esaú e Jacó, a atitude de Flora, que era o ponto de união entre os irmãos, pois ambos se apaixonaram por ela, diante da proclamação da república e do novo paradigma que se mostrava, é sentar-se ao piano e tocar uma sonata, numa espécie de indiferença ou até um sono dogmático kantiano. “E é o estado de espírito de Flora, quando ouve as notícias e opta por tocar uma sonata ao piano, que melhor traduz a alma brasileira” (PIZA, 2005, p. 345). Esse episódio da escolha pela sonata blasée dialogará com o conto machadiano Trio em lá menor.
Eis o trecho de Esaú e Jacó que trata da passagem da monarquia para a república brasileira e a opção romanesca e platônica, quase estoica, de Flora pela sonata, inserindo o Brasil na “vantagem de não ser presente, passado ou futuro”, mas “uma idealidade pura”, como diz Machado:
“Flora não era avessa à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma coisa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, sucedia-lhe ouvir alguma frase solta do pai ou da mãe: "...Mas como foi que...?" — "Tudo às escondidas..." — "Há sangue?" Às vezes um deles fazia algum gesto, e ela não via o gesto. O pai, com a alma trôpega, falava muito e incoerente.
[...]
“Também se pode achar na sonata de Flora uma espécie de acordo com a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moça ia com esse primeiro albor do dia, ou com esse derradeiro crepúsculo da tarde, — como queiras, — em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou acender velas. Quando muito, ia haver um governo provisório. Flora não entendia de formas nem de nomes. A sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarquia da inocência primitiva naquele recanto do Paraíso que o homem perdeu por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e única. Não haverá então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de Abraão agasalhará todas as coisas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá, lá, dó... (ASSIS, 1904, pp- 75-76. Sublinhei)”.
O rótulo de “disforme país futuro”, como bem observa Drummond, numa deformidade cuja descrição se aproxima da própria Alegoria da caverna, de Platão, onde a realidade se mostra exatamente como disforme e longínqua, borrada e extrínseca, acaba sendo uma pecha terrível que parece atravancar as ações necessárias no presente concreto da Pólis e da Ágora brasileiras. Ficamos, como nos alerta Ignácio de Loyola Brandão no seu romance Não verás país nenhum, num “não passado, não presente, não futuro”. Como também nos alertou Machado há pouco no episódio da sonata, que não é “presente, passado ou futuro”.
Acatamos ser uma terra geográfica com uma espécie de nação in absentia. Afinal, como os povos originários sempre frisam, no que convergem com parte do existencialismo, só existe o presente, tudo é presente. É a vivência deste presente, e não a de um eterno e cansativo vir-a-ser no “futuro”, ou de uma eterna saudade do “passado”, que deve ser encarada como a realidade da vida, num sentido que já põe Aristóteles, concreto, em confronto com a utopia e a deformidade as quais Platão, abstrato, deseja respectivamente louvar e repudiar.
Esta é uma das lições que os povos originários estão legando a um novo paradigma que nunca antes precisou ser encarado pela espécie humana, de que falarei. A mudança de paradigma que o “antropoceno”, nossa atual “era geológica”, na expressão de Paul Crutzen, está exigindo. Outra lição dos mesmos povos originários é o fato de que, ao contrário do que parece, embora só o presente seja a realidade experimentada, vivenciada, fruída e gozada por eles, os mesmos se ocupam, sim, das gerações do futuro, numa forma de alteridade e empatia raríssimas, que é a alteridade e a empatia por descendentes que nem sequer chegaram ao mundo.
O tema da redação do ENEM 2022, aplicada no dia 13 de novembro, foi exatamente os “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. Uma das grandes importâncias desse tema é o fato de que são essas tradições que atualizam vivamente o presente e uma visão de mundo em conformidade com o meio ambiente. E isso não é pouco, como algumas pessoas poderiam pensar, ainda inconscientes da importância central dessa questão no presente.
De fato, os desafios evocados pelo tema são enormes, porque passam por uma mentalidade classista brasileira altamente normótica e colonialista que simplesmente não quer abrir mão de nenhum dito privilégio em nome da realidade, que aponta para a complexidade e a diversidade como únicas formas de tornar possível a manutenção do meio ambiente e da própria sobrevivênccia das chamadas civilizações modernas. Há uma muralha da branquitude e uma muralha do patriarcalismo (talvez se fundindo numa só e única muralha) que se opõe aos povos tradicionais, assim como a toda e qualquer tradição concreta, por causa dos potenciais que essas tradições detêm de destruir muralhas de normoses imensas.
Nesse sentido é que, como eu friso em muitas obras, a tradição se contrapõe ao “conservadorismo”, uma vez que o que se busca conservar no que se chama conservadorismo é um estado-de-arte obsoleto e decadente de “civilização” eminentemente branca, patriarcal, heteronormativa, normótica etc., oriunda de uma divisão de classes altamente intransponível, hermética, herdeira dos colonialismos e das revoluções industriais inglesas e todo o poder destrutivo que elas representam no mundo contemporâneo, saturado e esgotado no antropoceno. Ao usar o adjetivo “hermética”, eu não posso deixar de observar que Hermes, o Deus grego da comunicação, também gerou “hermenêutico”, que, opostamente a algo “hermético”, evoca o diálogo que se abre à complexidade, e não ao binarismo estrito do hermetismo, permitindo que – queira ou não queira – a inclusividade se torne a regra, e nunca a exceção, no processo civilizatório do Brasil e, claro, do mundo.
A república brasileira, enfim, tem a chance, a partir de 2023, de mostrar a que veio. Não mais como um “país futuro”, no sentido inocente de Zweig, ou como “disforme país futuro”, no sentido distópico drummondiano, nem como uma pálida sonata, no sentido rousseauniano, e crítico, machadiano.
Com a valorização e o encarecimento profundos da nossa cultura, a tradição pode fazer frente ao conservadorismo, evidenciando-lhe as vertigens e delírios inoperantes no mundo contemporâneo. Podemos, ao confrontar a explicitude da crueldade do “conservadorismo” à brasileira, ver que o projeto de Nação brasileira tem lutado ferrenhamente contra as tradições concretas da cultura do Brasil, num delírio por um “futuro” que, na verdade, não passa do reflexo de um passado colonial com feições medievais e feudais de opressão, controle, privilégio – e NORMOSE.
O presente pressupõe a derrubada das normoses, o que acontece sempre, de uma forma ou de outra. Temos mais uma chance palpável, não sem esforço de luta antropológica, de nos tornarmos presentes. A civilização presente não tem nenhuma vocação em retornar à Idade Média, ao pré-capitalismo, às revoluções industriais inglesas, ao neoliberalismo imperialista estadunidense – por mais que os “conservadores” delirem em sentido contrário, de forma cada vez mais inócua e cada vez com menos pudor em explicitar quão cruéis podem ser para galvanizar o seu mundo futuro-passado.
O mundo é o presente. Novas formas de amar sempre percorreram as sociedades. É a regra, não a exceção. Não falo apenas de amar no sentido erótico ou, melhor, romântico, que engendrou o edípico núcleo “único” papai-mamãe-filho (Laio-Jocasta-Édipo).
A propósito, como estudioso da cultura ocidental, não posso deixar de conhecer a Bíblia cristã. No Gênesis 1: 27 se diz que “Deus criou macho e fêmea”. Paulo de Tarso já relativiza (ou desconstrói) esse fardo antigo-testamentário, cujo fim único era a procriação e o povoamento de uma terra então escassa de seres humanos – exatamente o oposto da terra de hoje. Na carta aos Gálatas 3: 26-28, Paulo, entrevendo a sociedade não classista e não segregadora altamente inclusiva que Jesus de fato propunha, anota que “Nisso não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há homem nem mulher”.
Como antropólogo, eu não poderia me eximir de enveredar pelas searas da teologia e, mais especificamente, ao falar em Brasil, da teologia cristã/católica/bíblica. Fugir disso ou ver nisso um tabu pode ser tão ignorante quanto calcar-se exclusivamente nisso como suposto (falacioso) modo de ver o mundo, as coisas, a linguagem, as pessoas.
Falo de novas formas de amar como princípios constitutivos da psique humana contemporânea. Quando Freud estabeleceu as três estruturas psíquicas básicas – o neurótico, o psicótico e o perverso –, deixou aberto espaço para que novas formas de estrutura partissem de pontos outros. É o caso do autismo, como vem sendo abordado hoje por psicanalistas, como uma possível quarta estrutura.
É nesse sentido que, como Marcuse salienta tão bem, Eros precisa, SIM, ser colocado no centro da civilização. Deleuze e Guattari, com seu cinquentenário livro O anti-Édipo, também alertam para isso, como tenho mostrado inclusive em artigos aqui, no 247.
Falo de amar, então, como força central absoluta, da qual o ser humano não pode fugir. Não o amor ou o tesão entre duas pessoas. Amar como verbo intransitivo mesmo, parafraseando livremente Mario de Andrade. Freud notou que “Quem ama sofre, quem não ama adoece”. Freud falava justamente em EROS, PULSÃO DE VIDA.
Quando o projeto “conservador” remete à castração edipiana e, portanto, a um modelo exclusivo em torno do qual toda a sociedade classista-branca-patriarcal tem se erguido, o que enfatizam é a PULSÃO DE MORTE, ou TÂNATOS. O controle advindo da opressão.
Todo o modelo ocidental tem tentado, com fervor, impor esse caminho unívoco às pessoas. O mundo, cada vez mais, entretanto, tem se multiplicado ao redor da complexidade e não da dicotomia. O pós-estruturalismo e o estruturalismo são supostos dialogadores que fariam a Flora de Machado de Assis sentar-se novamente ao piano para tocar outra sonata descorada.
Quando entendermos que EROS ou PULSÃO DE VIDA movimentam as engrenagens (para usar metáfora da revolução industrial) da CULTURA, e que é a CULTURA que movimenta os povos, começaremos a entender o desespero do “conservadorismo” ao observar sua ruína inexorável. O nazismo tentou fazer com que a cultura fosse controlada pelo Estado, quando a cultura é exatamente a proteção do povo contra os excessos que um Estado pode alcançar.
A tradição remete à cultura. A cultura é o presente. Tanto no sentido do existencialismo kierkegaardiano-sartriano quanto da cosmovisão dos povos indígenas tradicionais.
Não temos – felizmente – para onde fugir. Quando Euclides da Cunha disse, no alto de sua potestade de branquitude engajada (contém ironia), que “Estamos condenados à civilização”, ele talvez não tenha sabido que Hermes tirou dessa sentença o anátema hermético e dotou-a de uma previsão radicalmente inclusiva quase neopaulina.
O país do presente, qualquer país do presente, só pode girar ao redor de Eros como propulsor da civilização. A cultura como propulsora da civilização. Todo o mais é “nome e fumaça”, como diria Goethe.
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