O que propõe o rascunho da nova Constituição no Chile?
O rascunho do texto, que será votado em 4 de setembro, tem oito capítulos, 499 artigos e quase 48 mil palavras
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Por Valentina Priore e Natalia Rodriguez, Agência Regional de Notícias
O Chile votará no domingo 4 de setembro, se aprova ou rejeita a nova Constituição que começou a ser redigida no ano passado. Esta segunda-feira, o plenário da Convenção Constitucional entregou o rascunho do texto aprovado, que contém 499 artigos divididos em oito capítulos com quase 48 mil palavras.
O documento foi para a Comissão de Harmonização, que, embora não possa alterar substancialmente seu conteúdo, revisará a redação e eliminará redundâncias. Se aprovado com a atual prorrogação, o Chile poderá ter a maior Constituição do mundo, superando a promovida por Evo Morales na Bolívia, que tem 411 artigos.
Após 10 meses de debate, os constituintes chegaram a vários acordos e deixaram para trás algumas das propostas mais polêmicas enviadas pelos cidadãos, como a "prisão do ex-presidente Sebastián Piñera", a perda de autonomia do Banco Central e a proteção da vida desde sua concepção.
A nova Constituição elimina o Senado e inclui o direito ao aborto e à morte digna, bem como o reconhecimento da pluralidade e herança dos povos indígenas que compõem o território chileno.
Quatro meses após o plebiscito, 46% votarão contra a nova Constituição, segundo as últimas publicações das pesquisas Cadem e Activa Research. Nas pesquisas, a aprovação tem uma adesão entre 38% e 27,1%, enquanto os indecisos estão entre 16% e 27%.
O plebiscito é obrigatório. Se for aprovada, o presidente Gabriel Boric deve convocar o Congresso para que, em ato público e solene, seja promulgada a nova Constituição e se prometa cumpri-la. Caso vença a opção de rejeitar o novo texto, mantém-se a atual Carta Magna.
O processo
Em outubro de 2020, com o plebiscito nacional no Chile, os cidadãos aprovaram o início de um processo constituinte com vistas à elaboração de uma nova constituição. O texto que rege atualmente é de 1980, criado pelo regime de Augusto Pinochet (1973-1990).
Essa instância foi alcançada após os protestos sociais de 2019, quando durante 28 dias houve mobilizações massivas exigindo mais igualdade e o fim de um “sistema de abusos”.
Em maio de 2021, foram realizadas as eleições dos 155 convencionais encarregados da redação da nova Constituição, que tiveram sua primeira sessão em 4 de julho, na antiga sede do Congresso Nacional.
A partir do final de 2021 e até fevereiro de 2022, a Convenção Constitucional teve um período aberto para receber iniciativas cidadãs que deveriam chegar a 15.000 assinaturas para serem debatidas pelos constituintes. Das cerca de 2.500 recebidas, houve 78 propostas que ultrapassaram o objetivo a ser analisado com as comissões temáticas da Convenção.
Direitos Fundamentais e Sistemas de Conhecimento
Os Direitos Fundamentais são aqueles inerentes à pessoa humana, considerados essenciais “para a vida digna dos indivíduos e dos povos, a democracia, a paz e o equilíbrio da Natureza”.
Este capítulo reúne artigos sobre liberdade de expressão, segurança individual, liberdade de trânsito pessoal, direitos sexuais e reprodutivos, direito à vida e à integridade física e mental, liberdade de associação, moradia, saúde, assistência e direitos dos trabalhadores.
Os artigos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos estabelecem, entre outros pontos, que o Estado deve garantir às mulheres e pessoas com capacidade de gestar “as condições para uma gravidez, interrupção voluntária da gravidez, parto e maternidade voluntários e protegidos”.
Há um artigo dedicado à educação sexual integral, que inclui o reconhecimento das diversas identidades e expressões de gênero e a erradicação de estereótipos.
A regulamentação relacionada com a saúde implica a criação de um Sistema Nacional de Saúde, que integre "a rede de prestadores públicos, os hospitais e centros médicos das Forças Armadas e Policiais", através de um projeto de lei apresentado pelo presidente no prazo de dois anos após a nova Constituição entrar em vigor.
Em termos assistenciais, a proposta da nova constituição contempla a criação de um Sistema Nacional de Atenção, com "caráter estatal, paritário, solidário, universal, com relevância cultural e perspectiva de gênero e interseccionalidade", que “dará especial atenção a lactentes, crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas em situação de dependência e pessoas com doenças graves ou terminais”.
O novo texto da Carta Magna propõe que a educação seja universalmente acessível em todos os níveis e obrigatória desde o nível básico até o ensino médio. O Sistema Público de Educação será laico, gratuito e financiado pelo Estado de forma permanente e direta, para que cumpra plena e equitativamente os fins e princípios da educação.
O Estado deve “respeitar a liberdade de imprensa”, “promover o pluralismo midiático” e impedir a “concentração de propriedade” dos meios de comunicação e informação, conforme detalhado na seção Sistemas de Conhecimento.
Este capítulo também regulamenta os direitos relacionados ao patrimônio indígena e aos Povos Tribais Afrodescendentes, entre eles, “obter a repatriação de objetos de cultura e restos humanos” bem como a necessidade de “preservar a memória” dos povos originários.
Por fim, este capítulo contém o "direito a uma morte digna" que, embora não fale diretamente de eutanásia ou morte assistida, assegura “o direito das pessoas de tomar decisões livres e informadas sobre seus cuidados e tratamento no final de sua vida”.
Sistema Político e de Justiça
A composição política do Chile foi objeto de importantes debates em nível nacional e dividiu a Câmara, obrigando os constituintes a terem que negociar até chegarem a um modelo que alcançasse a aprovação dos necessários dois terços no plenário.
Após meses de discussão, o anteprojeto da nova Constituição estabelece um regime presidencialista, com uma legislatura bicameral assimétrica.
Por um lado, o Congresso dos Deputados permaneceria com 155 deputados eleitos, "pelo critério da proporcionalidade". No entanto, o atual Senado seria eliminado e substituído por um órgão com menos poderes, que chamaram de Câmara das Regiões.
Os membros desta Casa serão eleitos por região, tal como os deputados, mas o número de membros "deve ser o mesmo para cada um e em nenhum caso inferior a três, assegurando-se que a composição final do órgão respeite o princípio da paridade" .
Quanto ao chefe do Executivo, o texto estabelece que "para ser eleito Presidente da República é necessário ter nacionalidade chilena, ser cidadão ou cidadão com direito a voto e ter completado trinta anos", reduzindo os atuais requisitos em cinco anos.
Da mesma forma, permite a reeleição presidencial imediata, embora possa não ser aplicável ao atual presidente.
Quanto ao Judiciário, a principal mudança é a substituição do Tribunal Constitucional (TC) por uma Corte Constitucional. O novo órgão tem funções semelhantes, mas é composto por 11 magistrados, somando mais um membro do que o atual TC para evitar empates.
Outra mudança importante é a obrigatoriedade das eleições para maiores de 18 anos, enquanto “o sufrágio será facultativo para maiores de dezesseis e dezessete anos”.
Para as instâncias eleitorais, “será criado um sistema eleitoral de acordo com os princípios da igualdade substantiva” que “promova a paridade nas candidaturas”. Além disso, as listas eleitorais devem ser sempre chefiadas por uma mulher.
Se a nova Carta Magna for aprovada, o Chile terá pela primeira vez uma democracia paritária estabelecida desde a Constituição, sob a premissa de que a paridade "é um piso e não um teto", como propuseram vários convencionalistas. Desta forma, os Poderes Executivo, Legislativo e de Justiça, a Administração Estatal, as empresas públicas e os órgãos autónomos devem ter pelo menos 50% dos seus membros mulheres e devem incorporar a abordagem de género nas suas funções.
Em termos de segurança, dois artigos tratam de pontos que marcaram os primeiros dias do presidente Gabriel Boric, que enfrenta uma série de ataques de grupos mapuche, além de sucessivos protestos de transportadoras que reclamam da falta de segurança nas rotas do país.
As iniciativas do governo sobre o estado de emergência geraram atritos no partido governista que afirma avançar na refundação dos Carabineiros, na lei de inteligência, controle de armas e na lei de lavagem de dinheiro.
O artigo 19 do capítulo “Sistema Político” da nova Carta Magna indica que as polícias “são instituições policiais, não militares”, o que levaria a uma reforma da força policial.
Na mesma linha, nas categorias de Estados de Exceção Constitucional, é eliminado o Estado de Emergência, relacionado com a perturbação da ordem interna e que foi utilizado durante a explosão social em 2019 e na macrozona sul.
Desta forma, mantém-se o Estado de Assembleia para conflito armado externo, de Cerco para conflito armado interno e o Estado de Catástrofe. “Declarado o estado de emergência, será constituída uma Comissão de Fiscalização dependente do Congresso dos Deputados, com composição conjunta e multinacional” que deverá “supervisionar as medidas adotadas em estado de exceção”, e, em particular, “ a observância dos direitos humanos”.
Finalmente, a Convenção Constitucional aprovou um artigo que define o país como um "Estado Plurinacional e Intercultural" e, desta forma, reconhece "a coexistência de várias nações e povos no quadro da unidade do Estado".
No total, o projeto reconhece como povos e nações indígenas pré-existentes "os Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quechua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan e Selk'nam", deixando espaço para outros que possam "ser reconhecidos na forma estabelecida em lei”.
Além disso, estabelece que “o Estado deve garantir a participação efetiva dos povos indígenas no exercício e distribuição do poder, incorporando sua representação na estrutura do Estado”.
Meio Ambiente
Em seu primeiro artigo, o capítulo sobre Meio Ambiente reconhece a "crise climática e ecológica" global e responsabiliza o Estado por adotar "ações de prevenção, adaptação e mitigação de riscos" em relação às mudanças climáticas.
Com mais de 6.435 km de costa, a nova constituição estabelece que “o Chile é um país oceânico”, declara a água, o mar territorial, as praias e o ar como bens “inapropriáveis”. Responsabiliza o Estado pela sua proteção e pela gestão democrática da água, garantindo o acesso, o saneamento e o equilíbrio dos ecossistemas. Para isso, estabelece a criação da estatal Agência Nacional de Águas.
Os movimentos de animais, que promoveram campanhas para contemplar os direitos dos animais na constituição, conseguiram incluir um artigo que os qualifica como “sujeitos de proteção especial. O Estado os protegerá, reconhecendo seu sentimento e o direito de viver uma vida livre de abusos”.
Por fim, em relação à atividade de mineração, “o Estado tem controle absoluto, exclusivo, inalienável e imprescritível sobre todas as minas e substâncias minerais (...) sem prejuízo da propriedade das terras em que se localizam”.
"A exploração e uso dessas substâncias estarão sujeitos a regulamentação", embora o texto não proíba concessões a empresas privadas, deixando de fora as iniciativas que pediam a nacionalização da mineração. Além disso, geleiras e áreas protegidas serão excluídas de todas as atividades de mineração.
Forma de Estado
Os artigos sobre a Forma do Estado estão vinculados à territorialização do Estado e à autonomia regional.
A nova Carta Magna propõe que o Chile seja um Estado Regional, Plurinacional e Intercultural "constituído de entidades territoriais autônomas", política, administrativa e financeiramente. Este artigo pretende sair da atual forma jurídica chilena de "Estado Unitário".
Desta forma, o Estado estará organizado territorialmente em regiões autónomas que terão personalidade jurídica e património próprio. Além disso, terá poderes para se autogovernar “em atenção ao interesse geral da República, de acordo com a Constituição e a lei, tendo como limites os direitos humanos e a Natureza”.
Estas entidades terão “autonomia para o desenvolvimento dos interesses regionais, a gestão dos seus recursos económicos e o exercício dos poderes legislativo, regulamentar, executivo e de fiscalização”.
A eleição dos representantes para os cargos das entidades territoriais será por voto popular, assegurando, entre outros requisitos, a paridade de gênero e a representatividade territorial.
Um dos artigos mais debatidos é o “Maritorio” (dar ao mar o mesmo estatuto que o território), que finalmente estabelece as garantias para a preservação, conservação e recuperação ecológica dos espaços e ecossistemas marinhos e costeiros marinhos.
As regulamentações sobre a forma do Estado também se referem aos impostos e à descentralização fiscal. “A Lei do Orçamento Nacional deve tender a garantir progressivamente que parte significativa dos gastos públicos seja executada por meio dos governos subnacionais, com base nas responsabilidades que cada nível de governo deve assumir”, diz o texto.
O documento com a proposta constitucional inclui "mecanismos de modernização" dos processos e organização do Estado. Em seus artigos estabelece que serão tomadas as medidas necessárias para prevenir a violência e superar as desigualdades enfrentadas pelas mulheres e meninas rurais. Além disso, reconhece a ruralidade como expressão territorial.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popularAssine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247