Nós nunca baixamos nossas cabeças: confira o diálogo entre Pepe Mujica e Dilma Rousseff
O ex-presidente uruguaio e a presidenta Dilma falaram sobre o Brasil, integração regional, lutas por democracia na América Latina. Entrevistas ao M24, rádio independente no Uruguai
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Por M24 - Um diálogo entre Pepe Mujica e Dilma Rousseff
Na véspera da eleição presidencial brasileira, juntamente com Álvaro Padrón, que até poucos dias atrás atuava como diretor de projeto da Fundação Friedrich Ebert, e a equipe doprograma Nada que Perder da M24, principal rádio independente do Uruguai, convidamos Pepe Mujica e Dilma Rousseff ao diálogo sobre o Brasil deixado por Jair Bolsonaro, sobre o presente e o futuro da integração regional, sobre a América Latina e as lutas pela democracia. Um encontro entre duas figuras icônicas da história política latino-americana contemporânea, protagonistas de governos que fizeram imensas conquistas populares. Apresentamos aqui uma versão condensada deste diálogo histórico. (Pablo Gentili)
Estamos dialogando com Pepe Mujica de sua fazenda e com Dilma Rousseff de Porto Alegre. Bem-vindos...
Pepe Mujica – Aqui, na América Latina, os resultados dessas eleições no Brasil, em que Lula teve que tecer uma política de aliança muito ampla. Parece-me que o principal é a paz e a concordância. Naturalmente, são os principais tópicos para uma recuperação da justiça social, que inevitavelmente custará, mas que é o desafio que vem pela frente.
Além disso, espero que, pela importância do Brasil, a América Latina comece a existir em um mundo onde estamos quase desaparecendo. Acho que Lula ainda tem energia para isso e não vai esquecer. Portanto, nossa esperança está em um triunfo e no compromisso do que essa oportunidade formidável significa para o povo brasileiro.
Dilma e Pepe, vocês coincidiram no governo no período 2011-2015. O que eles podem resgatar a partir desse momento?
Dilma Rousseff – Primeiro quero cumprimentar Pepe, meu colega presidente. Você sempre foi, e sempre será, uma referência para todos nós na América Latina por sua luta, por seus compromissos, por sua visão de mundo. Também quero cumprimentar os uruguaios porque acredito que nós, em nosso tempo, construímos uma forte relação de fraternidade e percebemos juntos a importância da integração da América Latina.
Minha grande proximidade com Pepe é devido a essa percepção, que ele sempre teve, que só poderíamos ser fortes, estar juntos. Não podemos ser separados pelo mundo. Temos que construir uma integração regional eficaz. Somos quase um bilhão de pessoas neste continente. E nossa união deve ser baseada na defesa das políticas de distribuição da riqueza, da justiça social e da profunda redução da desigualdade.
Mas agora temos uma missão que é vencer a eleição no Brasil e isso exigiu uma grande frente democrática. Essa frente ampla tem que fazer as transformações pendentes. Estamos muito claros de que a viabilidade dessas transformações depende da organização do povo brasileiro, o que garantirá o sucesso de nossas ações no parlamento e em todas as propostas formuladas pelo Poder Executivo. Mas há uma prioridade: 33 milhões de brasileiros passam fome e mais do que o dobro, 71 milhões, têm alguma insuficiência alimentar. Isso não pode continuar.
Governaremos o Brasil novamente. Estamos certos de que Lula ganhará a eleição em 2 de outubro.
Pepe Mujica – Há muitas lembranças do momento em que compartilhamos nossos governos, impossíveis de resumir. Por exemplo, os acordos de conexão elétrica que permitiram que, quando a seca atingisse, poderíamos fornecer uma importante massa de recursos elétricos para o Sul do Brasil. Isso não caiu do céu. Fue uma construção que conquistamos juntos. Além disso, lembro-me dos passos que foram dados em termos de integração de fronteiras, o apoio que nos deram para a universidade recém-fundada. Lembro também que, quando surgiu alguma dificuldade, buscamos nos comunicar com a residênciado Brasil e funcionou. Havia uma maneira aberta de superar as dificuldades que surgiram na burocracia. Eu poderia falar sobre muitos gestos. Alguns ficaram inacabados pelo infortúnio que Dilma teve. Estávamos tentando alcançar uma política de integração genuína. Lembro-me, por exemplo, que nos comprometemos a fazer um navio importante aqui no Uruguai, o que nos custaria 60 milhões de dólares, quando muitas pessoas não acreditavam que isso poderia ser feito. Queríamos mostrar que nossos metalúrgicos poderiam participar do esforço de transporte que significaria a exportação de petróleo e o trabalho no oceano da bacia petrolífera que o Brasil estava inaugurando. Este projeto foi frustrado. Foi um verdadeiro projeto de integração econômica que surgiu dos critérios de bondade e abertura de Dilma, pois ela ficou clara de que a integração de um pequeno país como o Uruguai também significa conceder suas oportunidades. Lembro que juntos inauguramos os moinhos de vento em Colônia, com a participação do Estado brasileiro e tantas outras coisas que é impossível resumir em uma conversa desse tipo.
Lamento que o passo doloroso que fizeram à Dilma tenha deixado alguns projetos frustrados. Mas estávamos cientes de que a integração não é apenas um problema fenício: "quanto eu vendo e quanto você compra de mim", mas que tivemos que construí-la, tijolo por tijolo.
Espero que tenhamos aprendido que qualquer transformação no campo da integração precisa que as pessoas entendam e participem dela porque, caso contrário, não teremos a força necessária para superar os obstáculos que nos são apresentados.
Dilma Rousseff – Concordo como sempre, plenamente, em gênero, número e grau com Pepe. Acredito que uma das questões mais importantes para avançar na nossa integração teve a ver com o fato de que o Brasil, quando éramos governo, definiu a América Latina como seu principal, prioritário e parceiro local em termos de política externa. Para nós, nossos vizinhos são nossos irmãos. O Brasil é muito grande e não pode criar ou incentivar qualquer assimetria regional. Deve sempre ter uma posição cautelosa de apoio e não manter seu status hegemônico como os colonizadores e imperialistas sempre fizeram.
Acho que essas iniciativas foram muito importantes. Mas é necessárioavançar em uma nova fase.
Sempre queremos que nossa integração seja fortalecida na área mais importante que é a ciência e a tecnologia. Para que não sejamos apenas consumidores de Uber, Airbnb ou iPhones. Temos que produzir tecnologia para poder levantar a América Latina.
Deixe-me dizer algo sobre a liderança de Pepe para vocês, uruguaios. Estou convencido de que Pepe Mujica tem uma liderança muito maior do que os uruguaios supõem. Ele é uma pessoa que, para nós, representa a visão de um mundo melhor no sentido de valores, no sentido da perspectiva de uma nova sociedade. Tenho o grande prazer de ter vivido com Pepe. Quando eu era presidente do Brasil e do Pepe do Uruguai nos encontramos em Montevidéu e fugimos, conversamos como colegas e amigos, como presidentes que queriam o melhor para a América Latina. Será sempre um imenso prazer para mim falar com Pepe.
Como você vê o que está acontecendo na região hoje? Você considera que a integração regional, que foi reconhecida como uma das grandes dívidas do primeiro ciclo progressista, agora pode ser cumprida com os triunfos de Boric no Chile, petro na Colômbia, Arce na Bolívia e esse iminente triunfo de Lula agora no Brasil?
Pepe Mujica – A integração é uma luta. É uma luta para existir no mundo de hoje. É construir um beiral que começa percebendo que não se trata de esquerda, direita ou centro. É o desafio de ser ou não ser. Portanto, não é uma questão de fanatismo, é uma questão de autodefesa e ninguém deve ser deixado pelo caminho. Mal podemos esperar para ter um acordo absoluto sobre tudo, porque caso contrário, nunca seremos integrados. Você tem que construí-lo tijolo por tijolo com tudo o que há e entender que quanto mais dividirmos, mais dominados seremos. Portanto, devemos ter políticas flexíveis, mas continuar avançando. Acho que devemos considerar a cidadania da Indo-América. Por que? Porque seria um primeiro gesto político que nos consideramos cidadãos do mesmo território, alguns nascidos no Brasil, outros na Argentina, outros no Peru, mas com uma cidadania comum. Porque praticamente não há outra região no mundo, do Rio Grande à Terra do Fogo, na qual tantas pessoas podem falar e se entender. Latino-americanos podem se entender. Temos certas tradições comuns. Mais do que em outras partes da Terra. Cerca de 30 línguas são faladas na China. Na Índia, muitos outros.
Não se trata de construir um Estado ou perder nossas nacionalidades, mas de começar a construir uma unidade comum. Que em cinco ou dez anos vamos compor uma área onde possamos avançar com o nosso documento comum, como é feito na Europa. Então você pode continuar a avançar passo a passo, construindo a economia e os acordos que podem ser lentamente , mas permanentemente, como alguém que constrói um edifício complicado. Temos que tornar possível que nossos universitários trabalhem em todo o continente sem barreiras. Lute por inteligência, uma inteligência comum dos latino-americanos. Se não tivermos independência na inteligência, seremos subjugados. Precisamos de um grande negócio de todas as universidades públicas. Temos um feito inteiro pela frente. Não nos dividamos pela esquerda, direita ou centro. Vamos lutar pelo que está lá.
Dilma Rousseff – Acho que uma coisa é clara: a onda conservadora não e nunca vai incentivar a integração latino-americana. Para avançar na integração, devemos ter tolerância e devemos ter compromisso com o povo; uma política de redução da desigualdade profunda, um compromisso com o crescimento econômico e um compromisso com a democracia. São os três pilares da integração. Além disso, temos que defender que a América Latina tem uma capacidade real de se posicionar como ator presente no mundo. Isso significa que todos os países participam e se unem é necessário contemplar todos os interesses e reduzir as assimimetrias entre nós.
Estou muito otimista porque essa onda conservadora que começou lá em 2009 com o golpe contra Zelaya e continuou em 2012 com o impeachment de Lugo, foi interrompida com a eleição de Andrés Manuel López Obrador, um governo que busca e olha para a América Latina. Este fato é muito importante. Uma segunda questão é a vitória de Petro na Colômbia, a de Boric no Chile, a recuperação na Bolívia com a vitória de Lucho Arce, a vitória na Argentina. Há sempre forças populares, e como diz Pepe, há também forças conservadoras capazes de participar da integração. Nós mesmos vimos como isso era possível na UNASUL. Eram governos de todo o espectro político, tentando construir um projeto comum.
Nosso desafio é reduzir as assimmetrias. Você não pode construir integração favorecendo um país. Não pode ser feito porque não mantém, porque não sustenta seus fundamentos. Temos que fazer integração de infraestrutura, temos que fazer integração produtiva, diversificar plantas industriais. Temos que integrar, como diz Pepe, as universidades deste continente. Temos que fazer integração tecnológica. E devemos ter posições comuns no cenário internacional. Acredito que com a vitória de Lula teremos no Brasil, mais uma vez, uma base para que, juntamente com os outros países latino-americanos, possamos alcançar a integração regional novamente. E concordo com Pepe: a integração é uma questão para todos, não para um ou dois. Ninguém pode ser deixado para trás, caso contrário não há integração efetiva.
Acredito que estamos vivendo um momento decisivo na América Latina. Somos os maiores produtores de alimentos do mundo. Isso não é pouca coisa. Somos os maiores produtores de proteínas do mundo. Isso tem que ser valorizado.
Estamos agora recuperando a democracia no Brasil. Lula fez uma grande aliança democrática que permitirá que o país seja reconstruído. Estamos às vésperas das eleições e nunca antes no Brasil houve uma recuperação tão rápida. Essarecuperação é porque nunca baixamos a cabeça. Espero uma vitória em 2 de outubro, já no primeiro turno. Mas, se essa vitória não acontecer, venceremos as eleições no segundo turno.
Naverdade, quero dizer uma coisa: nós, entre presidentes, naqueles anos, construímos relações pessoais de confiança que têm sido muito importantes. Não éramos apenas parceiros do governo. Construímos um canal de diálogo baseado na confiança e no respeito que sempre nos uniu.
Pepe Mujica – Um abraço, querida Dilma, e para sempre.
Dilma Rousseff – Um grande abraço querido.
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