Suscita suspeição a maneira pela qual foi decidida a disputa pela empresa vencedora do trecho Norte do rodoanel em São Paulo, anunciada na terça-feira (14).
A obra, trecho final de 42 km na ligação viária que, circundando a capital paulista, visa desafogar o tráfego de caminhões pesados pelas marginais, havia sido iniciada em 2013.
Foi paralisada pela Justiça em 2018, que viu inidoneidade das empreiteiras então encarregadas. No melhor espírito punitivista que comandou a Lava Jato, condenaram-se não apenas proprietários e executivos, mas também inviabilizaram-se as próprias empresas responsáveis pela continuidade da obra, que já consumira o equivalente a R$ 8,5 bilhões em valores corrigidos.
O resultado é um capítulo da quebradeira que arrasou toda a indústria da construção pesada nacional, um dos setores mais pujantes, cobiçados e sabotados da economia brasileira, inclusive por sua presença internacional.
A nova concorrência organizada agora beira o crime. Relaxaram-as exigências do procedimento a um tal ponto que saiu (ou para que saísse?) vencedor um consórcio, Via Appia, que jamais assentou um tijolo em sua curta existência.
A empresa é na verdade um fundo de investimento e participação em infraestrutura, um "fundo de papel", como se diz, incapaz de tocar uma obra de engenharia pesada com o porte e a complexidade do Rodoanel.
Diante da vencedora excêntrica, sugerindo manipulação e direcionamento, a federação PT-PV-PCdoB anunciou que vai recorrer ao Tribunal de Contas do Estado.
Surgiram ainda suspeitas de que na verdade a Via Appia seria uma fachada para reais vencedores, como o grupo Bertin, este sim com portfolio de obras pesadas, mas que, por se encontrar em recuperação judicial, não pôde participar abertamente.
O Bertin, por sua vez, domina o consórcio SPMar, controlador dos trechos sul e leste do Rodoanel. A tal Via Appia é gerida pela Starboard Asset, que apresenta-se oficialmente como o primeiro fundo de crédito para empresas em “crises não estruturais” ou seja um escritório de assessoria de empresas em recuperação judicial. Para além disso, como alertou o jurista Pedro Serrano, há uma questão de lógica empresarial que escancara a negociata: "Eu duvido que veremos, daqui a 20 anos, esses fundos como titulares das concessões […] Eles irão vender sem nenhum controle público. Então o capital financeiro não serve para realizar atividade produtiva de infraestrutura”. Ainda, segundo Serrano, as concessões para fundos não têm garantia de qualidade das obras.
Os perfis inusitados dos envolvidos e o emaranhado dos entes participantes dão razão para os questionamentos sobre a confiabilidade da empresa que terá o papel de desenvolver um dos projetos mais faraônicos do Estado.
O advogado Marcus Bittencourt, diretor da Starboard, que segurou o martelo com o governador Tarcísio de Freitas no leilão do Rodoanel Norte, participou diretamente de um dos negócios mais polêmicos do bolsonarismo: a venda de campos lucrativos de petróleo da Petrobras para a 3R Petroleum, cujo conselho é presidido por Roberto Castelo Branco, ex-presidente da estatal.
É nesse ambiente esfumaçado da espoliação do patrimônio nacional que florescem negociatas e despontam oligarcas beneficiados pela porta giratória que dá acesso ao balcão de negócios em que se transformou a direção das estatais brasileiras desde o golpe de 2016, nos governos Temer e Bolsonaro.
Sobrevive em Tarcísio o mesmo espírito de liquidação açodada da coisa pública por meio de negócios duvidosos do ponto de vista moral e ineptos do aspecto técnico.
Talvez seja por isso que, para tentar compensar a flagrante falta de expertise da contemplada, o governador tenha aplicado mais marteladas no púlpito do que a vencedora da licitação chegou a fazer ao longo de sua sinuosa trajetória.
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