A filosofia racializada de Paulo Ghiraldelli e a desumanização de Djamila Ribeiro

Ao criticar a escritora, o filósofo reforça o estereótipo do preto ressentido e odioso, que guarda mágoa dos brancos

Djamila Ribeiro e Paulo Ghiraldelli
Djamila Ribeiro e Paulo Ghiraldelli (Foto: Reprodução)


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

A prática do jornalismo nos leva a pesquisar e a estudar conteúdos diversos, para termos alguma base acerca daquilo que escrevemos e sobre aquilo que estamos opinando. Numa dessas pesquisas de conteúdo, me deparei com um vídeo no youtube cujo título me chamou muito a atenção. “O ódio de alma de Djamila Ribeiro. Gente, isso não faz bem! ” O autor do vídeo é o filósofo e professor Paulo Ghiraldelli, um desses “revolucionários de condomínio”, como bem definiu o companheiro André Constantine ao se referir a alguns brancos de esquerda e a outros supostos novos aliados das causas progressistas, que nunca sofreram das mesmas mazelas que a população preta e periférica sofre, mas se julgam capazes de solucionarem os seus problemas através de ideias forjadas sob o academicismo eurocêntrico que os tornam superiores intelectualmente.

Já no título, o filósofo apresenta a argumentação do seu conteúdo, sob a manifestação de um pensamento que, durante séculos, justificou a escravização dos africanos. A ausência de alma. A essência desumana que o colonizador, com a anuência do cristianismo católico e protestante, atribuiu aos negros, para poder submetê-los, sem nenhum remorso ou culpa, às piores formas de tratamento e à total ausência de dignidade. Ao se referir ao suposto ódio que Djamila destila nos textos em que denuncia o racismo e propõe o seu combate, ele afirma que este “mal sentimento” vem da alma da escritora e alerta aos seus seguidores sobre o quanto isso é nocivo à sociedade. Reforçando o estereótipo do preto ressentido e odioso, que guarda mágoa dos brancos. E, no caso de Djamila Ribeiro, uma mulher preta, o conteúdo produzido pelo filósofo se torna mais problemático. Principalmente, quando ao longo do vídeo, em meio ao seu raciocínio, ele atribui essa mágoa da também filósofa, à ausência de amigos e à uma carência afetiva que ela deveria suprir na cama.

continua após o anúncio

Como filósofo, Paulo Ghiraldelli deveria ter o mínimo de compromisso com a sensatez, uma vez que Pitágoras definiu originalmente a filosofia, como um amor pela sabedoria, que apenas seria experimentado por seres humanos conscientes de sua própria ignorância. Conhecedor de Platão e Aristóteles, como eu tenho a certeza que ele deve ser, não levou em consideração que, por ser branco, não possui conhecimento sobre a dimensão exata do racismo, algo que nem uma profunda investigação ontológica do mundo real, como era proposto por Platão, será capaz de lhe dar. Assim também como desconsiderou a ontologia definida por Aristóteles como o estudo das propriedades mais gerais do ser, separando a infinidade de conceitos e determinações que o qualificam particularmente, ignorando a sua natureza plena. E isso deveria incluir, quando alguém se propuser a filosofar sobre negritude e racismo, o meio social em que este ser estava inserido desde o seu nascimento, assim como a sua exposição às diversas formas de invalidação e de violência social que ele sofreu e ainda sofrerá, em função de uma estrutura social racializada que o subjuga e o inferioriza.    

O texto de Djamila, que Ghiraldelli chegou a chamar de “Djamula”, que motivou a “preocupação” do filósofo, foi um artigo publicado em sua coluna da Folha de São Paulo, onde ela relata que, desde a infância, já percebia que era tratada pelos professores com uma certa “condescendência”, o que já lhe causava um “horror”, pois era como se ela fosse uma criança menos capaz do que as outras crianças brancas, e a sua inteligência na resolução de algumas questões causasse surpresa nesses educadores. Uma percepção que Paulo Ghiraldelli jamais precisou ter, porque a inteligência em crianças brancas não causa tanto espanto. E Djamila Ribeiro ainda cita o escritor Lima Barreto no subtítulo da coluna, ao lembrar que ele já dizia que a capacidade do negro é julgada a priori, enquanto a do branco é posteriori. Porém, Ghiraldelli considera que a mestre em filosofia política já era uma criança raivosa que trazia ódio na alma, por ter tido essa percepção com relação ao tratamento que lhe era dado. Segundo ele, nenhuma criança normal teria esse sentimento de revolta dentro de si e Djamila não estava sabendo entender o carinho e a proteção que os professores estavam lhe dando. O que ela teria confundido com condescendência e pena.

continua após o anúncio

O filósofo também demonstrou incômodo pelo fato de Djamila, segundo ele, falar muito de si e exaltar demais a si mesma. Algo que brancos fazem a todo momento e poucos se incomodam, por ser lido como um comportamento natural de quem é o padrão da sociedade. Eu poderia resumir essa percepção de Paulo Ghiraldelli, dizendo que a autoestima dos pretos incomoda muita gente. E a de uma mulher preta incomoda muito mais. Mas tudo é muito mais. E, como filósofo, ele deveria saber disso. Ou até sabe, mas ignora por ser branco e nunca precisar ficar demonstrando a sua capacidade diante do racismo institucionalizado sob o qual nós pretos tentamos sobreviver. Por fim, ele acusa a escritora de estar odiando até quem está ao lado dela e arremata dizendo que tem medo de Djamila, porque o seu “tipo psicológico” pode ser uma má influência para a sociedade, disseminando o seu ódio e fazendo a sua mágoa virar uma tendência entre outras pessoas. Paulo Ghiraldelli, certamente, deve atribuir o mesmo ódio de alma ao escritor e ativista racial norte-americano James Baldwin, que dizia que “ser negro e relativamente consciente é estar quase sempre com raiva” Com mais medo ainda ficaria ao ler o texto “Pessoa negra, abrace a sua raiva”, da antropóloga e pesquisadora, Izabel Accioly, onde ela escreve que “uma vez que não existe experiência negra sem racismo, acredite: a sua raiva não vai passar”

Eu poderia falar sobre as minhas experiências com o racismo sendo um homem preto, porém, periga o professor Paulo Ghiraldelli me acusar de querer chamar a atenção para as minhas dores e de estar centralizando a mágoa de toda a negritude. O fato é que, apesar de discordar de algumas ideias de Djamila, como, por exemplo, a de combater o racismo com um manual para brancos deixarem de ser racistas, me senti profundamente incomodado com algumas das falas que Ghiraldelli direciona a ela no vídeo, considerando que se espalhará pela sociedade uma espécie de “peste do rancor alheio” e que não teremos mais uma nação para viver se deixarmos essas ideias proliferarem. O medo branco de Paulo Ghiraldelli, mesmo que ele não seja ou não se considere racista, talvez seja o de perder o domínio da narrativa histórica que sempre colocou os negros em seu devido lugar. O de silenciamento das suas dores e negação da sua episteme. O medo branco também traz o incômodo de se enxergar racializado e ter o seu comportamento social racista estudado, o que poderia desnudar a essência de muitas de suas atitudes e fazê-lo se descobrir racista. Sigamos incomodando. O que não podemos é continuar passando essa raiva sozinhos. Viva a resistência!

continua após o anúncio

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247